segunda-feira, 26 de maio de 2014

NÃO CUSTA LEMBRAR*

Por Jefferson Rocha

Era muito bacana conversar nos fins de tarde com aquele senhor. Seus cabelos brancos davam um ar prateado à sua aparência. Envolvia qualquer assunto em uma experiência sem precedentes e passava uma confiança que me deixava tranquilo quanto à resolução de alguns problemas.

A trilha sonora de fundo de nossas conversas era o barulho de algazarra que as crianças do bairro produziam em suas brincadeiras pós-aula.

Aquele senhor tinha muita coisa para me contar. Sua vivência lhe possibilitou a descoberta de algumas saídas estratégicas para os perrengues que a vida nos apronta.

Sempre que conversávamos, envolvia-me facilmente com seus assuntos de interesses relevantes. Sua fala mansa, que expressava um cansaço pelos anos vividos, dava aos “causos” uma credibilidade extraordinária.

Quase um século de vida era fonte de histórias e estórias fantásticas. E o essencial: saber contar esses episódios era de suma importância. Não adiantaria tanta pauta sem um bom texto.

Outro ponto que era encantador naquele ancião de extrema simpatia, era que ele também gostava de ouvir. Não tinha soberba. Mesmo tendo absorvido as experiências de muitos anos de vida, gostava de absorver mais.

Certa vez, contou-me como sua família chegou ao distrito que se transformou na cidade onde vivo com a minha família. Ouvi as histórias de como as casas foram feitas e divididas, como a igrejinha do bairro fora construída, como a violência cresceu nas imediações.

Admirava-se com a tecnologia de hoje, mas se irritava com as libertinagens contemporâneas. Mesmo com a idade avançada, tinha um vigor sem igual: trabalhava na horta, limpava seu quintal e não conseguia ficar parado. 

Mas hoje escrevi sobre esse senhor, que era exemplo de vida, para destacar uma passagem simples e necessária:

Em uma de nossas conversas, comecei a explanar sobre o futebol, minhas opiniões e achismos; meus esquemas táticos e times preferidos; jogadores e técnicos. Durante um bom tempo falei sobre uma das coisas que cercam minha profissão com certo entusiasmo.

Ele não esboçou nenhuma reação, olhou-me com aquele jeito simpático e acolhedor como um gesto de avô para seu neto, sem me interromper nem por um segundo. Não houve diálogo, ele apenas ouvia. Achei estranho, porque isso nunca havia acontecido em nossos bate-papos.

Foi aí que ele me deu o costumeiro sorriso e falou com toda a delicadeza possível: “Olha, se tem uma coisa que não gosto, é jogo de bola; nunca gostei”.

Atônito, queria saber o porquê, mas fiquei extremamente sem graça para perguntar. E era melhor assim. Como a paixão que move milhares de pessoas não moveria aquele senhor? Um autêntico brasileiro. Pela sua luta diária, pela sua experiência e por tudo que viveu, ele era a experiência personificada do brasileiro. Mesmo assim, não estranhava o seu desdém ao esporte bretão, porque ele havia nascido muito antes do Brasil ser o país do futebol.

O velho ancião que me mostrou muito em nossas conversas, ensinou-me outra preciosa lição:

O futebol é a paixão de muitos brasileiros, mas não de todos. 

P.S: Dedico esse texto ao senhor João Domingos 1918 - 2013


Texto da série: "Entre quatro linhas tortas" publicado no "Diário do Aço Online" em agosto de 2013.  

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